segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Veias abertas no cerrado brasileiro

Por Laércio Júlio da Silva
26/10/2009
A história do nosso Cerrado, a savana brasileira, é pautada pela grandiosidade de sua flora e fauna mediadas entre desrespeito e o pouco conhecimento da maioria da população. Na verdade, os brasileiros conhecem muito mais a savana africana e sua fauna divulgada diariamente através de filmes, desenhos animados, seriados e “enlatados” sobre o mundo animal, do que propriamente sua irmã tupiniquim, tão rica ou mais do que sua igual siamêsa na época em que os continentes estavam juntos e a Terra se chamava “Pangea”.

Demonstrando cobiça e coragem que só a procura do ouro poderia incentivar, os bandeirantes iniciaram a aventura rumo ao Cerrado no Centro-Oeste brasileiro somente 90 anos depois do descobrimento. Os estados de Goiás e Tocantins, só foram alcançados em 1590 à custa da matança de civilizações indígenas, já que a igreja na época considerava os primeiros moradores de nossa terra um bando de “sem almas” que deveriam ser catequizados para que pelo menos não ardessem eternamente no fogo do inferno. Lavada em muito sangue derramado, o que não foi assassinado foi vitimado pela doença dos brancos. Relatos dessas viagens nos revelam como foi difícil “romper” esses desconhecidos e virgens sertões e suas veredas. A descoberta do Rio Araguaia, onde em suas margens há milhares de anos vivia a nação Karajás, só ocorreu por volta de 1618, depois de 28 anos de tentativas frustradas, inaugurando aí o genocídio dos povos do Cerrado. Destaque especial para o subsolo do Cerrado, especialmente a “corrida do ouro” que passou por Goiás nas mãos dos bandeirantes, culminando nas jazidas de ferro do Vale do Paraopeba (MG) entregues pelo golpe de 64 a Hanna Mining Co., que anteriormente ajudou a derrubar dois presidentes eleitos democraticamente: Jânio Quadros e João Goulart (fonte: As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano). Infelizmente, hoje o bioma já é reconhecido como um “hotspot”, expressão de alerta usada pelos ambientalistas como sinal de estado crítico. O bioma Cerrado está sendo desmatado numa velocidade muito grande e sem qualquer critério de manejo ambiental.

As principais atividades que destroem o Cerrado são: a caça esportiva e predatória; a falta de manejo de animais silvestres em locais hoje cortados por estradas de rodagem; o contrabando de animais, principalmente aves, que alcançam alto preço no exterior; a produção de carvão vegetal com o agravante do trabalho escravo e infantil; as monoculturas, principalmente soja; o garimpo; e a mineração predatória. O mais curioso é que até os anos 1970, era voz corrente que as terras do Cerrado eram consideradas ácidas e impróprias para a agricultura. Nas décadas de 1980 e 1990, pesquisas aliadas às novas tecnologias, fizeram com que a produção de soja no Brasil central, passasse a representar mais de 40% da produção nacional, tornando-se um dos principais itens da balança de exportações brasileiras.

Ao lado da grande biodiversidade, o bioma caracteriza-se como uma imensa caixa d'água no continente sul-americano, captando águas pluviais que abastecem nascentes que formam rios das bacias do Amazonas, Tocantins, Parnaíba, São Francisco, Paraná e Paraguai. Também pelos imensos aquíferos aqui encontrados, entre eles o Aquífero Guarani, o Cerrado é fundamental para a manutenção do equilíbrio hidrológico no continente.

Nos dizeres do próprio Ministro do Meio Ambiente Carlos Minc “Há dez anos, segundo nossos dados, tanto na Amazônia como no Cerrado eram desmatados 20 mil quilômetros quadrados por ano. Felizmente, conseguimos, por meio dos programas tocados pelo governo, reduzir pela metade o desmatamento no bioma amazônico. A má notícia é que ainda não conseguimos fazer isso pelo Cerrado”. O estudo realizado em 2008 pelo IBAMA revelou que as perdas do bioma aproximam-se da metade de sua área original (2,03 milhões de quilômetros quadrados). A área transformada em pastagens e plantações é maior que a Venezuela ou equivalente a 1,5 vezes o tamanho da França ou, ainda, três vezes a área do Japão. Se fôssemos japoneses já estaríamos arrendando áreas em outros países para dar conta somente das atividades agropecuárias, principalmente para o plantio da soja.

Um capítulo à parte é a monocultura, em que a soja é a grande personagem, obedecendo os ditames do mercado internacional que impõem o que devemos exportar e produzir, tem decisivamente contribuído para abrir uma grande clareira no Cerrado brasileiro. Como a “corrida do ouro”anteriormente, a nova “corrida da soja” trouxe a mentalidade devastadora que esta enraizada nos brasileiros que vão tentar a sorte em áreas por “formar”. Uma área “formada” é um território totalmente devastado e pronto para o plantio, para orgulho dos produtores mal orientados e, na maioria das vezes, vindos de fora, em alguns casos desrespeitando as áreas de reserva legal e as matas ciliares sem consciência do mal que farão ao solo e as futuras gerações. Precisamos urgentemente encontrar caminhos para a exploração racional do solo, já que se trata de uma das maiores riquezas do nosso ecossistema. Além da fiscalização rigorosa, há de haver continuamente um esforço enorme de conscientização dos agricultores da região, no sentido de preservar o nosso produtivo e belo Cerrado.

Laércio Júlio da Silva é diretor da Federação Brasileira de Naturismo (FBrN) e presidente da Associação Goiana de Naturismo, o Goiasnat