segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Memórias do subdesenvolvimento no Haiti

Por Laércio Júlio da Silva

23/01/2010

Acreditando piamente que tinha finalmente chegado as Índias, o navegador Cristovão Colombo, em 1492, resolve circundar uma ilha que ele mesmo batizou de Hispaniola. Pouco mais de 200 anos depois de sua façanha, quase toda a população nativa havia desaparecido escravizada ou morta pelos invasores espanhóis. A parte ocidental da ilha com poucas terras férteis onde fica hoje o Haiti foi cedida à França pela Espanha em 1697. A outra parte ficou sendo o que hoje conhecemos como República Dominicana, com terras mais aráveis, mas na época menosprezadas pelos dominadores espanhóis. Mesmo assim no século 18, a região foi a mais próspera colônia francesa na América, fruto da cultura da cana, do café, do desmatamento e da escravidão africana. O Haiti foi o primeiro país latino-americano a declarar-se independente, a primeira nação das Américas a abolir a escravidão e hoje é o país mais pobre do continente. Após uma revolta de escravos, a servidão foi abolida em 1794. Nesse mesmo ano, a França passou a dominar toda a ilha.

Financiados pelos ingleses e espanhóis, inimigos dos franceses, em 1801, negros e mulatos se unem sob a liderança de Toussaint l’Ouverture, um escravo que aprendera a ler e adquirira certa cultura intelectual, tornando-se governador-geral, mas, logo depois, foi deposto e morto pelos franceses, episódio brilhantemente retratado no filme Queimada (1969), do diretor Giulio Petercorvo. A ação do filme decorre num ilha ficcional nas Caraíbas, o enredo é baseado, parcialmente, na história do Haiti. O ator Marlon Brando interpreta um agente inglês infiltrado nas colônias portuguesas e espanholas oferecendo dinheiro e apoio para uma revolução que favoreça interesses imperialistas as custas do sangue da população local. O filme utiliza-se de mensagem política direta, mostrando a fundo o processo de manipulação da classe dominante e por isso despertou a ira dos censores da ditadura militar brasileira, sendo na época proibido de ser exibido em nossas terras.

Depois de 1804, para que o exemplo de fundação da primeira nação americana livre da escravidão não contaminasse as Américas, os escravistas europeus e estadunidenses mantiveram o Haiti sob bloqueio comercial por 60 anos no intuito de estrangular a liberdade conquistada a duras penas. Conhecedor dessa tradição libertária, em 1815, Simon Bolívar refugiou-se no Haiti após o fracasso de sua primeira tentativa de luta contra os espanhóis. Recebeu apoio, dinheiro, armas e pessoal militar com a única condição de que abolisse a escravidão nas terras que libertasse. O bloqueio só teve fim quando o Haiti concordou em assinar um tratado draconiano pelo qual seu país pagaria à França uma indenização vampiresca de 150 milhões de francos.

Entre vários golpes, insurreições e instabilidades econômicas chegamos ao ano de 1950 com a eleição do médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, que junto com seu filho Baby Doc administram uma ditadura baseada no terror e apoiada militarmente pelos Estados Unidos até 1986. Esquadrões da morte, os tontons macoutes (bichos-papões), instauram no país um regime policial. O país sofre novo isolamento internacional, que empobrece sistematicamente a população até que novas manifestações populares expulsam os tiranos. Seguem-se novas eleições e outras deposições até a presidência de Jean-Bertrand Aristide, em 1990. Apeado do poder pelos militares e em meio a uma catástrofe gerada por um furacão que devasta a ilha, a situação é agravada pela decisão do Congresso dos Estados Unidos de não enviar dinheiro para minimizar a tragédia. Em vão, Aristide cobra da França uma indenização de 20 bilhões de dólares pelos 107 anos de escravidão sofrida pelo povo, já que atualmente 80% da população vive abaixo da linha da pobreza. Por considerar a situação uma “ameaça à paz e à segurança da região”, o Conselho de Segurança da ONU, dominado pelos EUA, estabelece a Missão de Paz das Nações Unidas para a “estabilização” do Haiti. Com o objetivo de garantir a ordem, 9.000 soldados de diversas nações, entre eles 1.300 brasileiros, estão até hoje ocupando o país. Ao aceitar o convite para capitanear as forças de paz, o Brasil tenta provar que está apto a ocupar uma vaga no Conselho de Segurança, grupo de elite da ONU, a mesma que considerou o sismo geológico acontecido há poucos dias o pior já enfrentado desde sua criação em 1945. A ONU anunciou que enviará mais militares para conter o caos instalado pela fome e o desespero da população, mas é importante salientar a afirmação do deputado Fernando Gabeira antes da tragédia: “O Haiti não necessita de tropas, e sim de sementes...” Constrangido, o atual presidente norte-americano, Barack Obama, que é de ascendência africana como 95% da população haitiana, admitiu logo após o trágico terremoto do último dia 12 que o povo haitiano não seria esquecido, obrigando a comunidade internacional a refletir sobre a responsabilidade dos países que secularmente exploraram e abandonaram o Haiti. Esperamos que essas palavras se traduzam em ações sem o interesse da dominação.

Laércio Júlio da Silva é diretor da Federação Brasileira de Naturismo (FBrN) e presidente da Associação Goiana de Naturismo, o Goiasnat.

www.goiasnat.com.br